segunda-feira, 28 de dezembro de 2015


O mundo que eu tive

Eu sempre atendia ao telefone, nunca deixava tocar, nunca mesmo. Mas ontem eu estava pra baixo, cansada, dormi mal, e não queria levantar de jeito nenhum, o telefone insistia. O dia lá fora estava lindo, em frente ao meu prédio havia uma pracinha, algumas árvores que acomodavam a moradia de alguns pássaros, que cantavam sempre cedinho, as árvores balançavam muito e o barulho das flores se enroscando me fazia sentir que havia vida lá fora, o sol já quente, mas não dava calor porque aqui venta bastante, mas um vento agradável, frio, mas que deixa você sair de casa com roupas leves, nessa época as folhas das árvores estavam amarelas queimadas, algumas mais marrons que outras, uma segunda chamada começou, o telefone gritava, berrava pra que eu me levantasse da cama deixando de pensar nessas pequenas sensações tão boas. Depois de um tempo, um bom tempo, me levantei, quando cheguei perto do aparelho, que tocava outra vez, ele parou, não havia motivo especial para minha indisposição, eu só estava pensando em mim e no quanto eu merecia uma preguicinha, tudo bem que uma noite mal dormida acaba com seu dia, mas era terça-feira e eu iria ficar em casa, porque estava de folga do jornal. Que satisfação, ficar em casa quando todos trabalham, pegam metro, correm em seus ternos e saltos, de um lado para o outro, saem e entram em carros e táxis, e eu aqui, agora com meu café, meu jornal.

Não me importei em ver as chamadas, se fosse urgente tentariam no celular, se fosse o Will me ligaria direto ou mandaria uma mensagem. Olhei no relógio da cozinha, 1oh da manhã, já? Sim, já está bem tarde e significa que eu não posso mais ir correr, o que me resta é preparar algo para o almoço, nas minhas folgas o Will sempre vem pra cá. Olhei no relógio 14h e nada do Will, nada de mensagem, telefonema, nem me atende, nada. Fui até a secretaria eletrônica e tinha duas mensagens, não lembrava que estava no silencioso, apertei o botão para ouvir, era o número do Will, “oi, bom dia dorminhoca...” eu sorri quase abraçando a secretária. “to saindo de casa agora, atrasado, e queria te dar um bom dia, primeiro que qualquer pessoa, te amo e ...” nada. Nada. A ligação foi interrompida por um barulho horrível, como se fosse de caminhão, ou um carro bem grande, não sei, e depois silencio.

Fiquei apavorada, na hora tentei ligar novamente pra ele, mas não atendia, tentei em casa, depois de muitas chamadas a mãe dele atendeu, uma voz chorosa me perguntava como eu estava, eu não entendi nada, e ela percebeu que eu não sabia ainda, me perguntou se eu havia ouvido o recado, claro que não, eu estava no meu mundo, pensando só em mim, com a secretária no silencioso, mas não respondi nada, só disse que não, e ela me falou que hoje bem cedo ao sair de casa, ainda na rua em que ele morava, Will foi atingido por um carro, atropelado, logo quando descia a calçada do prédio dele, ela disse que viram ele ao celular mas que parecia calmo, e me perguntou se ele falava comigo, eu não consegui responder, soltei o telefone e fui pra minha cama, de onde eu nunca deveria ter saído, o lugar onde eu tinha até pouco tempo uma realidade bem melhor, com ele, mesmo longe, mas com ele comigo, juntos, pra sempre.

Agora eu voltava com a cabeça pesando mil quilos e o coração em pedaços. Olhando as roupas dele que estavam penduradas no cabide da parede ao lado da cama, a xícara de café que ele sempre deixava no criado mudo, os óculos de sol que ele havia esquecido, parecia que não era verdade, tudo aqui fazia parte da minha vida com ele, tudo aqui era eu e ele.

Acordei mais uma vez com o telefone tocando, num sobressalto atendi, no segundo toque já estava com o telefone na mão, era a mãe dele perguntando como eu estava, em cacos claro e querendo morrer, mas só respondi que estava indo, não queria que ela se sentisse pior, ela disse que estava preocupada comigo, porque eu a deixei falando sozinha ontem, ela tentou me ligar mas o telefone estava mudo. Eu adormeci ontem depois de muito choro, peguei direto, só me levantei pra tomar um remédio pra dor de cabeça e voltei a deitar, apaguei. Ela me perguntou se eu havia entendido tudo, e porque eu não tinha ido até lá ainda para vê-lo, o corpo já havia chegado, o corpo. Não era mais o meu Will, era o “corpo” dele que havia chegado para que nos despedisse, eu mais uma vez comecei a chorar e não consegui responder.

Agora estou aqui, me arrumando pra “vê-lo”, tenho que ir, se é como dizem, tenho que prestar essa última homenagem a ele, eu tenho que dizer mesmo que seja ao vento, que o amo e sempre o amarei, e que me perdoe também, por não ter atendido, se bem que eu estaria bem pior se tivesse com ele ao telefone na hora, certamente eu teria saído correndo até encontrá-lo e meu estado estaria bem pior agora, não percebi a roupa que coloquei, também não comi nada hoje ainda, são 9h da manhã, 3 anos e 2 meses depois do dia em que encontrei o homem da minha vida, e agora estou indo enterrá-lo, estou indo me despedir.


Olhando em volta, sinto como se me despedisse da casa também, passando a mão pelos móveis, pelos objetos, pelas coisas dele, minhas, nossas, estou olhando como se fosse a última ou a primeira vez que vejo tudo aqui, essa casa era minha e dele, tudo aqui foi escolhido pra durar a vida toda, nossa vida toda, enquanto eu ando pela sala ele aparece em cada canto, rindo, derrubando algo, me olhando com cara de desculpas, vestindo a camisa, tirando, é muito real, mas sei que ele não está aqui e nunca mais estará, só nos meus pensamentos e talvez nos sonhos, peguei minha bolsa, minhas chaves e na porta da frente dou uma ultima olhada para trás, ao sair só terei uma certeza, de que não sei o que vou encontrar quando voltar, não sei se continuarei a viver aqui, assim, sem ele, nesse vazio, na minha vida agora vazia, o que eu sei é que não sou o suficiente pra mim.

Diakova

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