O mundo que eu tive
Eu sempre atendia ao telefone,
nunca deixava tocar, nunca mesmo. Mas ontem eu estava pra baixo, cansada, dormi
mal, e não queria levantar de jeito nenhum, o telefone insistia. O dia lá fora
estava lindo, em frente ao meu prédio havia uma pracinha, algumas árvores que
acomodavam a moradia de alguns pássaros, que cantavam sempre cedinho, as árvores
balançavam muito e o barulho das flores se enroscando me fazia sentir que havia
vida lá fora, o sol já quente, mas não dava calor porque aqui venta bastante,
mas um vento agradável, frio, mas que deixa você sair de casa com roupas leves,
nessa época as folhas das árvores estavam amarelas queimadas, algumas mais
marrons que outras, uma segunda chamada começou, o telefone gritava, berrava
pra que eu me levantasse da cama deixando de pensar nessas pequenas sensações
tão boas. Depois de um tempo, um bom tempo, me levantei, quando cheguei perto
do aparelho, que tocava outra vez, ele parou, não havia motivo especial para
minha indisposição, eu só estava pensando em mim e no quanto eu merecia uma preguicinha, tudo bem que uma noite mal dormida acaba com seu dia, mas era terça-feira
e eu iria ficar em casa, porque estava de folga do jornal. Que satisfação,
ficar em casa quando todos trabalham, pegam metro, correm em seus ternos e
saltos, de um lado para o outro, saem e entram em carros e táxis, e eu aqui,
agora com meu café, meu jornal.
Não me importei em ver as
chamadas, se fosse urgente tentariam no celular, se fosse o Will me ligaria
direto ou mandaria uma mensagem. Olhei no relógio da cozinha, 1oh da manhã, já?
Sim, já está bem tarde e significa que eu não posso mais ir correr, o que me
resta é preparar algo para o almoço, nas minhas folgas o Will sempre vem pra
cá. Olhei no relógio 14h e nada do Will, nada de mensagem, telefonema, nem me
atende, nada. Fui até a secretaria eletrônica e tinha duas mensagens, não
lembrava que estava no silencioso, apertei o botão para ouvir, era o número do Will,
“oi, bom dia dorminhoca...” eu sorri quase abraçando a secretária. “to saindo
de casa agora, atrasado, e queria te dar um bom dia, primeiro que qualquer
pessoa, te amo e ...” nada. Nada. A ligação foi interrompida por um barulho
horrível, como se fosse de caminhão, ou um carro bem grande, não sei, e depois
silencio.
Fiquei apavorada, na hora tentei
ligar novamente pra ele, mas não atendia, tentei em casa, depois de muitas
chamadas a mãe dele atendeu, uma voz chorosa me perguntava como eu estava, eu
não entendi nada, e ela percebeu que eu não sabia ainda, me perguntou se eu havia
ouvido o recado, claro que não, eu estava no meu mundo, pensando só em mim, com
a secretária no silencioso, mas não respondi nada, só disse que não, e ela me
falou que hoje bem cedo ao sair de casa, ainda na rua em que ele morava, Will
foi atingido por um carro, atropelado, logo quando descia a calçada do prédio
dele, ela disse que viram ele ao celular mas que parecia calmo, e me perguntou
se ele falava comigo, eu não consegui responder, soltei o telefone e fui pra
minha cama, de onde eu nunca deveria ter saído, o lugar onde eu tinha até pouco
tempo uma realidade bem melhor, com ele, mesmo longe, mas com ele comigo,
juntos, pra sempre.
Agora eu voltava com a cabeça
pesando mil quilos e o coração em pedaços. Olhando as roupas dele que estavam
penduradas no cabide da parede ao lado da cama, a xícara de café que ele sempre
deixava no criado mudo, os óculos de sol que ele havia esquecido, parecia que
não era verdade, tudo aqui fazia parte da minha vida com ele, tudo aqui era eu
e ele.
Acordei mais uma vez com o
telefone tocando, num sobressalto atendi, no segundo toque já estava com o
telefone na mão, era a mãe dele perguntando como eu estava, em cacos claro e
querendo morrer, mas só respondi que estava indo, não queria que ela se
sentisse pior, ela disse que estava preocupada comigo, porque eu a deixei
falando sozinha ontem, ela tentou me ligar mas o telefone estava mudo. Eu
adormeci ontem depois de muito choro, peguei direto, só me levantei pra tomar
um remédio pra dor de cabeça e voltei a deitar, apaguei. Ela me perguntou se eu
havia entendido tudo, e porque eu não tinha ido até lá ainda para vê-lo, o
corpo já havia chegado, o corpo. Não era mais o meu Will, era o “corpo” dele
que havia chegado para que nos despedisse, eu mais uma vez comecei a chorar e
não consegui responder.
Agora estou aqui, me arrumando
pra “vê-lo”, tenho que ir, se é como dizem, tenho que prestar essa última homenagem
a ele, eu tenho que dizer mesmo que seja ao vento, que o amo e sempre o amarei,
e que me perdoe também, por não ter atendido, se bem que eu estaria bem pior se
tivesse com ele ao telefone na hora, certamente eu teria saído correndo até
encontrá-lo e meu estado estaria bem pior agora, não percebi a roupa que
coloquei, também não comi nada hoje ainda, são 9h da manhã, 3 anos e 2 meses depois
do dia em que encontrei o homem da minha vida, e agora estou indo enterrá-lo,
estou indo me despedir.
Olhando em volta, sinto como se
me despedisse da casa também, passando a mão pelos móveis, pelos objetos, pelas
coisas dele, minhas, nossas, estou olhando como se fosse a última ou a primeira
vez que vejo tudo aqui, essa casa era minha e dele, tudo aqui foi escolhido pra
durar a vida toda, nossa vida toda, enquanto eu ando pela sala ele aparece em
cada canto, rindo, derrubando algo, me olhando com cara de desculpas, vestindo
a camisa, tirando, é muito real, mas sei que ele não está aqui e nunca mais
estará, só nos meus pensamentos e talvez nos sonhos, peguei minha bolsa, minhas
chaves e na porta da frente dou uma ultima olhada para trás, ao sair só terei
uma certeza, de que não sei o que vou encontrar quando voltar, não sei se
continuarei a viver aqui, assim, sem ele, nesse vazio, na minha vida agora
vazia, o que eu sei é que não sou o suficiente pra mim.
Diakova
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